domingo, 2 de dezembro de 2012

da falta do cigarro


Era alguma coisa de pouco asseio,  de mole.. alguma coisa a tornava interessante...  Tinha cara de gozo, de quem acorda em cama alheia sem ter dormido  e veste um camisão emprestado pra ir embora. Cara de noite em claro, cabelos que não conheciam escova e boca.. ah! Boca de quem beijou a pele de outras bocas...

E pouco se falavam, conhecera-a num breve olá , e,  de  olás se riam. Mas já se iam duas madrugadas sem que conseguisse esquece-la ou lembra-la  ao certo. Talvez devesse chama-la para um café ou para um chope.  Mas então seria correr o risco de ouvi-la. Bastavam-lhes os olhos, os possíveis vinte e dois anos e o jeito de quem faz pouco caso de tudo por simples falta de paciência e conhecimento de causa ou  circunstância. Ela não precisava dizer nada. Só deixar os olhos esverdeados entreabertos.  Então não era um café que deveriam tomar. Talvez chama-la para fumar .  Mas faltava-lhe cigarro e juventude para  trocar.  Então a lembrança da fumaça não queimada era o que restaria impregnando suas  próximas madrugadas... até que se cruzassem mais uma vez, que se rissem novamente e, quem sabe, houvesse então um cigarro  ou não mais a necessidade dele...

sábado, 10 de novembro de 2012

Fadas Meninas

A menina, muito centrada, de lápis em punho respondia sem voltar-lhe a atenção:

-Você está desenhando, pequena? O que desenha?
- o rosto de deus
-Mas ninguém jamais viu o rosto de deus...
- Espera um pouco que já já você vê!

                                                             
                                                                        (Com os créditos a Márcio Baltazar, que viu a carinha de deus!)

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Olha o passarinho...


Um toquezinho estranho e insistente fazia-a lembrar que já era dia e tinha de ir pra casa. Não ficava bem acordar às três da tarde na casa do peguete inabitual... mas antes das oito também... é sacanagem!!!

Ele abre o olho esquerdo, ensaia abrir o direito, constata a mensagem do face que o toquezinho anunciava e, fazendo um gracejo, pede com a voz rouca de quem ainda tá pensando em acordar:

- põe seus pezinhos do lado dos meus...

Ela, tentando entender, mas achando até bonitinho, franze a testa, mas emparelha os pezinhos aos dele. Fica com vergonha por não ter feito as unhas dos pés, mas felizmente não tinha unha encravada e seu joanete andava bem discreto ultimamente.  TSSSSC!!! Uma foto.

- ?

Antes que ela consiga organizar alguma ideia de pergunta, ele, muito faceiro, posta a foto dos pés enlaçados entre os lençóis, como resposta ao bróder que bombardeava sua linha do tempo com fotos douradas da orla ensolarada naquele domingo solar, chamando-o para uma corrida.

Ela, meio surpresa e meio puta, sentiu-se, de certa forma...exposta, invadida.... Mas, entre a preguiça e dois bocejos, achou o rapaz até bem criativo e discreto! Por via das dúvidas, levantou e foi-se embora logo. Dizem que o que abunda não vicia... mas vai que...

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

De pés e pós


Tudo nela era uma crescente, das enxaquecas às paixões.  Tudo buscava seu paroxismo como numa espécie de inevitável ponto gravitacional. Vivia urgente e desesperadamente, chorava copiosamente... As coisas lhe eram superlativas!!!

Quando tinha insônia eram noites inteiras em claro e quando dormia, sonhava tanto a ponto dos sonhos sonharem a realidade, que por sua vez perdia a hora do dia.

Foi assim que, numa hora incerta de qualquer dia desses, amou. E amou tão intensa e tresloucadamente que não teve dúvida de que seus pés correriam para além do chão, até alcançar este tão perseguido amor. Assim correu, correu e correu exaustivamente.... até que de tanta sofreguidão, cuspiu pra fora do peito seu coração aflito e extasiado.

Desde então não a vi, mas soube que agora anda cantando mantras ao nascer do sol, estuda medicina ayurvédica, cultiva cogumelos numa cidadezinha no sul da França e o coração numa salmoura.  

domingo, 30 de setembro de 2012

Quando vi os olhos embaçados da moça e perguntei o que tinha, respondeu:

- tenho um gato, um pé de coentro alguma paciência

E por que a tristeza?

 - Preciso de mais!!!  -  e saiu antes de especificar se eram mais gatos ou coentro que lhe faltavam!

sábado, 22 de setembro de 2012

A fada do feijão


Fadas são como pirimlampos... aparecem e desaparecem ao seu bel prazer. Assim também os duendes ou o famigerado Mestre dos Magos lembram-se dele? Famigerado sim, porque segundo consta, no fim das contas ele atrapalhava mais que ajudava com seus enigmas indecifráveis... Mas, voltando às fadas, gente, convenhamos, não dá pra ficar vendo fada o tempo todo, a não ser quando se toma um ácido, ou quando se está apaixonado ou apaixonada por uma delas. Fadas são exuberantes demais, afoitinhas demais, fazem muito barulho ou muito silêncio... têm mais é que ser intermitentes mesmo! Doce demais enjoa, salgado demais dá sede, muita fritura dá azia! Então não me venham falar de relacionamentos fofos, incapazes de conviver com as ausências. Não me venham falar desta colaboração geminada, moto-contínua, que não olha para os lados, que não sente outros sabores... Alguém pode precisar quantos tipos de feijão existem? Sim, feijão é uma semente leguminosa adorável e os apreciadores desta iguaria, sem dúvida, pretendem continuar degustando os novos tipos geneticamente modificáveis, e, claro, voltar sempre e fielmente à boa e velha feijoada... e ao feijão fradinho, feijão verde, carioquinha... Feijão, lembrem-se, é ítem básico na cesta básica da família brasileira.

Fadas gostam de feijão, é isso!  Aparecem famintas e desaparecem com a inevitável indigestão de seus apetites glutões! Então, não maldigam as fadas. Não é falta de amor, atenção, bem querer. É excesso de andanças, ou voanças... Elas somem, mas aparecem... somem... aparecem de novo... e somem...aparecem...

 

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Prova sem crime

No Direito Penal, ciência chata e inútil, o crime putativo se dá quando determinado agente desempenha dada conduta, imaginando tratar-se de tipo penal, traduzindo: a criatura comete certo ato imaginando que é crime. Logo, se a criatura realiza o tal ato, a priori haverá provas: provas de um não crime!
Foi quase assim com Albertina. Namorava um rapaz há mais de três anos e, há pouco mais de um mês estavam noivos, com data marcada do casório e tudo! Entretanto, por mais que andasse na linha, ele carregava uma pulga enorme atrás da orelha. E era uma pulga gigante, bem nutrida, que dia após dia engordava mais... Havia dias em que a pulga aparecia mais que a cara sisuda e séria do noivo ressabiado...
Então, Albertina já incomodada com a presença insistente da dita pulga, resolveu que daria fim àquela situação, de uma forma ou de outra. Tratou de espalhar por ai que andava de chamego com o filho da vizinha, com o amigo do irmão, que trocava bilhetinhos com o rapaz da seguradora e que ficava até altas horas ao telefone com o professor de violão. Não deu outra: assim que o burburinho chegou ao pé do ouvido do noivo, ele rasgou todas as cartas de amor que ela o havia mandado, devolveu-lhe todos os presentes, desmarcou a data do casório e tirou a pulga da orelha, passando a desfilar com ela de braços dados pra cima e pra baixo na maior intimidade.
Albertina? Não foi, portanto, um caso de crime putativo, nem de final feliz, nem o escambau. Se o Direito fosse uma ciência certeira e profícua talvez servisse pra disciplinar e conduzir sentimentos, mas qual o que?
 Ela disse que estava em paz, que deu comida a quem tinha fome, que alimentou o mostro alheio faminto e que  pra esta lei não há código, nem juiz,  nem tribuna. Apenas infratores... ou benfeitores!

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Atavismos pós modernos


Cinco quilos e meio mais gorda e depois de tentar uns seis regimes descompromissada ou descaradamente mesmo, resolveu, meio como que sem querer, adaptar-se à nova figura mais rechonchuda. Os anéis do dedo anelar agora só cabiam no mindinho, o que tornava inúteis as antigas alianças de compromisso. E que mal havia afinal, se eram velhas alianças de ex-compromissos? Melhor que não coubessem mais em dedo nenhum mesmo!

Agora era esquecer as roupas apertadas e desfilar o novo look sem restrições... uma espécie de abuse-se sem moderações. A ordem do dia era ser gordinha e feliz! Embora decerto esta felicidade estivesse sufocada entre a muita malha do camisão XG que lhe fazia as vezes de mortalha sepulcral. Depois de ouvir um desavergonhado “ô lá em casa!!!”, tinha de admitir ter ficado mais à vontade no corpanzil avantajado... Muito embora tivesse a consciência de ser  uma moça alta, de traços harmoniosos que conversavam com a tonalidade da sua pele e a expressividade dos seus olhos, segundo palavras do personal stylist que, mediante o módico custo de seus honorários, fê-la ressignificar sua relação coma balança !

E tava tudo quase certo. Mais umas cinco sessões de terapia e saberia como dialogar com a enorme e irrefutávelvel  saudade da época em que esperneava e retrucava as cantadas baratas dos machos alfa que tentavam reduzi-la à condição ínfima de objeto sexual.

Mas enquanto não atingia esta elevação espiritual, que a deixaria a um passo da felicidade, abria a geladeira pra pensar. Sim, porque longe de ser um hábito de gordo, abrir a geladeira para caçar coisinhas geladas é, praticamente um atavismo existencial da pós-modernidade!



quinta-feira, 30 de agosto de 2012

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Agridoce

Era um doce de garota...ria por nada, de tudo,de graça. Era um riso tampão, daqueles feitos pra calar a boca cheia de vento.
Um dia, quando seus melífluos sorrisos enjoaram o namorado que lhe instigava a vomitar biles ou qualquer outro despautério amargo, deu mais dois sorrisinhos fofos e, finalmente, disse num tom quase sério
- meu doce é a síntese da sua acidez.
Ele riu um riso amarelo quase verde...

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Um acarajé e a conta!

Rio Vermelho, Salvador-Ba, hoje à tarde (e ontem e antes de ontem também). Jovem corredor, atlético, bonito. Baiana de Acarajé, quarenta e poucos anos, filha de Iansã com certeza.
 
 - Um acarajé e um silêncio cheio de prosa.
 
 
"Agora é sério! Eu não sei mais o que fazer para essa baiana de acarajé me dar um sorriso, um meio sorriso, ao menos responder o que eu pergunto! Já tentei de tudo - bom dia, boa tarde, boa noite, tudo bem, olá, como vai, e a família, e esse bahia, o vitória, o Ajax, vai chover, já tentei pedir acarajé com camarão, sem, dois acarajés, abará, cocada, pizza, e ela não desfaz a tromba!! Não, ele deve ser paulista! E daquelas que tem horror a baiano, e pela necessidade acabou sendo levada a vender acarajé, e odeia ser chamada de baiana. Achei foi pouco, preta!! Mas no fundo, sempre acho que são problemas sexuais. Acho que vou tentar passar uma cantada.
  Pelo sim, pelo não, dois acarajés e agora só me inscrevendo para a São Silvestre!"
 
 
Deve ser piada, nego! Todo santo dia o fulano me chega pedindo acarajé e cheio de graça. Deve achar que tá podendo! Boca cheia de dente, com covinha no rosto, regata suada colada no peitoral largo, pernas bem torneadas das corridas de quem vai da Barra a Itapoã... e acha que eu vou dar osadia?! Aonde?! Com certeza é um playboizinho do Corredor da Vitória, desses que acham que ganhei o dia porque ele tá puxando prosa! Deixe ele se achar! Que quando eu tiro esses  cinco quilo de renda branca e solto meus cabelos trançados, tem muito nego que não se segura nas tamancas... e aí, meu pai, a Baiana de acarajé aqui vira Mundinha de Itinga na roda de samba!

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Notícias de lá (do Vale do Capão)

Meditou durante doze horas seguidas e já não sentia os braços e troncos e pernas picados pelos mosquitos gigantes! Devem ser geneticamente modificados esses mosquitos do Capão... potentes, mutantes, mosquitos putativos na boa fé da picadura.
Depois voltou ao Samsara, ao ciclo de seu auto-pertencimento e xingou da primeira à última geração de pernilongos.  Ficou olhando a pele intumescida em estampada reação alérgica e gozando o prazer da coceira levada às últimas consequencias. Tomaria dali o Vale do Capão inteiro tatuado na pele, mesmo quando não houvesse mais sangue ou ferida, e abandonar-se-ia também na epiderme largada pelo prazer imensurável do gozo.
Era assim que ia  se desfazendo pelos caminhos, trocando-se através de cada poro e orifício interpenetrados. Depois emprenhava-se das marcas todas pra fabular canções de ninar suas malícias. 

sábado, 18 de agosto de 2012

Calcinhas velhas - parte II

A Fada Bêbada manda notícias do seu retiro no Capão e pergunta se não é muito reducionista da minha parte postar que mulheres usam calcinhas velhas quando desapaixonadas.
Fadinha, o que é reduzir um ponto de vista? Observar o que acontece com uma mulher e falar sobre isso, a custo de todas as outras? Pois que seja também! Queremos falar das mulheres que usam calcinhas e das que não usam, das que usam e tiram suas calcinhas. Das mulheres novas de calcinhas velhas, das calcinhas novas sem mulheres dentro... Então, vá plantar seuas mudinhas de coentro, enquanto eu falo da moça que só se acha bonita através dos olhos do namorado sim! Ela não é menos mulher por isso... E no mais, os soutiens queimados já viraram cinzas há tanto tempo... Mulher usando cuecas também é tão demodê, que amor ou desamor, calcinhas velhas ou não são só possíveis composições dum mosaico bem mais interessante!

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

mudas de coentro e porções de bem estar!

Numa mesma semana perdeu os óculos, o dinheiro do aluguel...  e nem estava apaixonada! Ao contrário, andava meio largada, unhas por fazer, calcinhas e soutiens velhos não combinados entre si... Foi assim que descobriu o quanto gostava de suas roupas puídas e dos cabelos desgrenhados. Comprou duas jardineiras e resolveu plantar mudinhas de coentro. Não sabia exatamente porque coentro...mas detestava salsinha! Então... tava tudo certo!

domingo, 12 de agosto de 2012

Existencialista, eu ?!?!?!

Linha Direta com a Fada Bêbada (em seu retiro no Capão):

Eu pensei querer ser mãe
Queria muito ser pai
Mas sou mesmo a neta da Chiquita Bacana -
(com a bênção de Seu João e de Seu Caê)

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Voando para o casulo

A Fada Bêbada esteve ontem em missão de despedida. Disse estar partindo para uma temporada na Chapada Diamantida, coisa que todo ser vivente deveria fazer... Passar, pelo menos um mês inteiro em contato com o mundo em forma de planta, de água, de terra e céu acesos.  Disse que tem estado muito a contragosto de tudo, tem se apaixonado pouco, então... vai para o Vale do Capão!
Se tudo acontece num bater de asas o tempo inteiro, então tecer um casulo e reinventar o vôo deve fazer parte dos argumentos de eternidade do dia-a-dia...

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Contos de fadas

Quando a Fada Bêbada andou apaixonada por uma moça lânguida, de pele macia e olhos enormes, imaginou que devia se tratar de uma  outra...fada! Mas como acreditar nessas besteiras? Nunca se apaixonou por príncipes, mas por sapos... então sua fada talvez fosse alguma rã ou perereca! O resto... sexo e amizade.

terça-feira, 17 de julho de 2012

... e Dom Ratão caiu na panela do feijão!!!


Vocês devem conhecer a história de Da. Baratinha... que tanto escolheu o eleito senhor detentor do seu amor, tanto escolheu... que despachou grilos elegantes, sapos falantes, porcos saltitantes e acabou encantada por D. Ratão, aquele que acabou na panela do feijão! Pois muito bem, também se não conhecem a história , sinto informar que a minha infância e a da Fada Bêbada foram mais lúdicas que a de vocês!

Chega-me , portanto, ainda agora a Fada Bêbada, murcha e lacrimosa, metida num preto básico... e muito soturna e calada -  status este não condiz com a personalidade da nossa amiga...

Voltava de um velório. Morreu o casamento de sua melhor amiga. E neste momento desisti de entender o que quer que fosse, afinal, ela que está tão além e aquém das instituições todas... ela que há anos deixou de crer na irrefutabilidade da monogamia e adotou como modelo de relacionamento perfeito o cult-classic de Sartre-Beauvoir... não haveria porque em vestir o luto pela morte do casamento de quem quer que fosse!

Mas disse que esse casamento era diferente... que era o único a fugir de todas as suas convicções... Ou então era a exceção que dignifica a regra! E disse que era lindo vê-los! Ela chegava junto e sentia que a felicidade ganhava mais corpo ainda... e bem poderia chegar aonde quer que fosse... E já havia muitos, mas muitos anos mesmo que eles eram eternamente jovens! Quando na ocasião das bodas de prata, por exemplo, fizeram uma festa à fantasia e riram tanto ou mais que na primeira festa de que participaram todos... E agora, sem que nem pra quê, no meio de uma feijoada, o casal anunciou a separação. Segundo contaram, como teriam casado muito novos, não tiveram tempo de experimentar outros universos e agora começariam a degustação, cada um na sua (nada de menages a trois ou casas de swing).  A Fada Bêbada, num estado desolador, disse ter recebido uma punhalada letal  e desmoronou aqui no meu sofá, morrendo à míngua de suas desilusões. Palavras dela.

Como eu omitisse opiniões, levantou-se insolente e disse que era mesmo uma feijoada indigesta e, ao contrário do final de Da. Baratinha, que perdeu seu amor na panela do feijão, quem sabe sua amiga e todos, ao final,  encontraríamos o feijão na panela do amor? Estou pensando até agora, então, se o que disse faz algum sentido, se é uma espécie de tostines ilógico, ou só uma apoquentação mesmo de fim de noite.... Mas acho que o que ela não entendeu é que a feijoada não fora indigesta... só acabou! E quando o feijão acaba, a fome assola e devora os convivas!

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Síndrome dos caquinhos


 Hoje deve ser o dia mundial da inconveniência e ninguém detectou no Google! Não bastasse a sexta feira preguiçosa, sorrateira e fria que se aboletou no meu sofá, enrolando-se abusadamente no meu edredom e me exigindo que lhe fizesse sala,  ainda me chega a Fada Bêbada com suas  frases-descobertas,  clamando por atenção.  Ela imagina que chega a grandes descobertas a partir de suas observações de alcova e me vem toda prosa, com ares de grande pensadora... e eu tenho de parar o que estou fazendo para servi-lhe torradas com chá de jasmim... Só assim ela se acalma, dá duas piruetas e vai embora feliz da vida – levando, claro, seu moleskine debaixo do braço, esperando por novas tiradas “geniais”!

Hoje a grande conclusão é de que depois dos trinta, tudo que dá tchiltchi no ser humano demora consideravelmente para voltar aos eixos.  Perguntei-lhe onde estava a grande descoberta (???) ... e ela, muito detentora de seus dizeres, garantiu que a premissa não se aplica apenas a perna quebrada, bunda caída ou gripe mal-curada... disse que coração quando se quebra, depois dos trinta... leva mais tempo pra juntar-se  em caquinho por caquinho!! E garantiu com a propriedade, que lhe é peculiar.  Quem sou eu para contrariar a Fada Bêbada em seus dizeres de alcova?! Quando questionei sobre suas andanças por ai, dando a entender que ela, de repente, andava consolando algum quarentão mal amado, deu duas risadas de canto de boca e disse que, apesar dos meus trinta, eu não tinha coração pra quebrar, então ficasse tranquila que o mal dos caquinhos não me pegaria de surpresa jamais!

Antes de ficar aliviada com o mal que não me acometeria, fiquei porque ela saiu voando porta a fora e fazendo voltar a paz silenciosamente sepulcral da minha sexta-feira madrugueira, que a esta altura, afinal, já nem me parecia tão inconveniente assim...

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Vexame facebookiano


Ainda bem que ela estava bêbada demais para postar a trilha sonora do seu desatino. Um vexame facebookiano. Sim, porque na era das redes sociais, por que ela iria se expor num bar ou festinha junina? Não. Um cabernet sauvignon e seus pares foram o bastante para que ficasse alegrinha, alegre, senhora de si, desesperada e acabasse postando que amava todo mundo, saísse curtindo os memes mais estapafúrdios - que falam de baratas que se reproduzem em marte – e cutucando gente que não conhecia... algo que, já no século passado Assis Valente cantava “beijei na boca de quem não devia, peguei na mão de quem não conhecia...” Pois, eu que estava do lado... atesto que foi triste!!! Nunca havia presenciado um porre on line. Então, para não destoar, como não conseguisse fazê-la tomar um café amargo que passei especialmente para a ocasião, deixei-a quieta e liguei meu note. Loguei-me ao face e fiquei curtindo as sandices que ela postava tresloucadamente... Felizmente a trilha sonora da macaquice só eu ouvi!!!

segunda-feira, 2 de julho de 2012

um canto na rua


E a jovem loira, esquivada no cantinho da rua, procurando um portal que se abrisse ali no meio de tudo e a jogasse no centro de coisa alguma, falava quase cantando em seu desafino não tão discreto, ao aparelho celular, com os olhos marejados:  “se você acha que eu te cobro...”

Por isso os amores líquidos, menina loira dos olhos marejados. Amor líquido escorre ladeira abaixo, precipita-se com a gravidade... a não ser que  o mantenha n’algum jarro, bacia ou garrafa... Então você terá um amor engarrafado, ou embaciado...Embaçado, menina, como seus olhos vermelhos. Porque assim como amor não se explica, desamor também não. Não se cobra, nem se cobre com tampas de tapwares coloridos, a serem emprateleirados na despensa, sob pena de abafá-lo. Mas não se engane, há quem goste de amores organizados, bem lacrados e devidamente etiquetados sim.

Voltei pra casa e a frasezinha continuou em meu ouvido ecoada pelos macaquinhos cerebrais (sim, eu tenho macaquinhos que macaqueiam tudo ao seu deliberado e bel prazer).  É bom que eles a ecoem mundo afora. Em algum canto desse mundão deve haver alguém tentando tirar de alguma concha na beira do mar, ou de uma velha rabeca desafinada, exatamente este seu canto desarmoniosamente infeliz.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

"Factótum", Cap. 37

 

Certas escrivinhações apenas se escrevem. Não é a primeira vez que, lendo Bukowski, visto-me na pele de suas mulheres e regurgito suas palavras... A FadaBêbada diz que isso não passa  de mera admiração, que estilística ou etílicamente pouco importa, já que não me tornará melhor bebedora, quiçá escritora de coisa alguma!!! Neste caso, bambear, tropeçar e cair será sempre a menor das consequencias!

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Eu era a secretária da gerencia. Há época, só me conheciam por Carmen mesmo e a origem espanhola do meu nome não condizia com meus cabelos muito loiros e minha pele clara, sem mancha nenhuma de sol. Usava vestidos de tricô com decotes que insinuavam meus 300ml de silicone em cada peito e faziam meu corpo insolente a tudo ao redor. Sapatos sempre de salto agulha, meias de nylon, cinta-liga e mais uma porção de adereços que me consumiam quase metade do ordenado raquítico que ganhava naquela espelunca. Tinha muitas certezas àquela época, dentre elas : a plena consciência do poder da dança dos meus quadris no vai e vem da malemolência dos meus vinte e poucos verdejantes anos.
O escritório era um ambiente insalubre, inóspito e todos eram olhos famintos no meu serpenteado de única fêmea reinante. Eu... gostava.  O encarregado das entregas, um sujeito de mãos largas, rudes e ares de quem não sabia, nem queria, ter lábia doce pra mulher alguma, despia-me despudoradamente com pensamentos tão lascivos que seriam capazes de ruborizar até as mentes mais sujas. Finalmente, sem mais se conter em suas calças, puxou-me a um dos transportes de carga que descarregavam nos fundo do galpão. Pegou-me por trás, numa fúria bestial. Foi bom. Morno... quase tão quente quanto o sangue que lhe fervia as têmporas embebidas em suor.  Por um momento, esforçando-me na busca de seus olhos desgarrados, quase descobria  em que paragens perdiam-se febris, mas estava mais divertido senti-lo quente e pulsante entre minhas coxas grossas. Tinha me erguido o vestido de tricô acima dos quadris e começado a meter-se em mim num ritmo até bem envolvente. Por fim, apertou-me os lábios contra sua boca, como se quisesse, inutilmente, arrancar-me o vermelho e só percebi que gozou pela sua respiração que começava a desacelerar. Depois, a misericordiosa e cerrada escuridão tragou  a cara insólita daquele homem , brindando-me com nossos silêncios apaziguados.

"Bad as me" (não poderia faltar trilha sonora para minha incorporação andrógino-bukowskiana)

sábado, 12 de maio de 2012

Tempo de domingo


Ela tinha vinte e dois anos, três papagaios, duas tartarugas e um medo horrível da solidão... Mas não gostava de gente.

Trabalhava de sábado a sábado, das oito às dezoito... e no domingo  conversava com  a algazarra de Tartufo, Rogério e  Alfredo. Alternava o passar do tempo dando  alface fresca a Margot e Osmar. Mas sempre, ainda antes das seis da tarde, sobrava um tempo que demorava a acabar. A programação da TV aberta lhe lembrava o fim da tarde de um domingo lento e isso, de uma forma muito certeira, a perturbava.

Não costumava ter dinheiro sobrando para locar filmes... e quando tinha... preferia ir ao cinema. Hesitava, na maior parte das vezes, porque sabia que a olhariam, teriam pena de que estivesse só... Então, chegava sempre com os traillers começando. E, se por ventura, errasse nos cálculos e chegasse um pouco antes, fazia pose na catraca da entrada, olhando impacientemente o relógio e pegando o celular como se fosse discar para alguém que a fazia esperar. Assim ficava mais aliviada. Mesmo assim, só entrava na sessão, depois das luzes apagadas e fazendo  cara de quem tomou bolo!

Teve uns dois namoricos, que não superaram o marco de um mês de deduração e, nas duas vezes, deu graças a Deus quando terminaram. Além de tudo não gostava de sexo... ou  não sentia falta...

Começou a fazer terapia dizendo que tinha medo que seus bichos morressem antes de si...Felizmente eles ainda dispunham de muita vida pela frente. Também a terapia durou três ou quatro inconsistentes sessões...

Então, adotou mais dois cágados, um papagaio cego, que lhe demandava cuidados especiais, e plantou coentro e tomates num canteiro improvisado no fundo da cozinha. Agora andava até acelerada, senão o domingo não caberia no final de semana! Deitava bem cansada e quando abria o olho... já era segunda-feira!


segunda-feira, 30 de abril de 2012

Pés e orelhas frias e uma porção de truques inócuos


Estou bem acoplada aqui no dorso da minha noite fria, com um allegreto do Concerto Brandemburgues para esquentar os pés dos ouvidos e eis que me chega a Fada Bêbada com uma garrafa de um tinto italiano para me lembrar que noites assim são boas para esquentar a pele em outra pele. Que noites assim são boas para esquecer os modos, os medos ou que seja requentar paixões.
Tomo-lhe a garrafa nas mãos e sirvo-lhe um pouco do meu café com amarula e um pouco de Bach. Também aquece os pés, Fada Bêbada! E se não desperta leões, embala um pequeno e companheiro gato em sono tranquilo e profundo.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Abraço de cobra

Fada bêbada, esquece que cobras não tem braços para lhe devolver abraços?  Mas você é teimosa! Diz que não precisa de abraços devolvidos, que abraça porque quer. Pois bem, abrace-se à suas cobras então e aguarde que seus próprios  braços envolvam, primeiro a elas, de braços ausentes, e, por fim, amarrem-lhe num laço de consolo ou dó talvez.
É bem isso que você quer, eu sei.  Prefere não esperar o acalanto de quem quer que seja e abraçar a quem já sabe , de antemão, que não lhe voltará recíproca alguma! É fácil querer bem assim, Fada Bêbada! É fácil abraçar-se a si!
Ah, claro, você também abraça lontras e modestos obeliscos... uma gama de afetos!

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A cor do sofá da sala de livros

Ela ficou imaginando qual seria a cor do sofá da sala em que ele sempre adormecia com o computador ligado ou lendo algum texto não tão interessante. Normalmente esses sofás costumam ser desconfortáveis, porque, afinal, não se trata de uma sala de sofás. E esta que seria a peça mais desnecessária, ganha status de imprescindibilidade.
Lembrou-se do sofá preto em que seu filho adolescente teimava em dormitar antes de ir para a cama . Lá, mesmo a contragosto seu, ele podia enrolar a madrugada inteira antes de tomar banho e trocá-lo pela cama e pelo pijama. Lembrou-se do pai que, até hoje, amanhecia no sofá lilás do meio da sala e lá permanecia para não ouvir as lamúrias de sua velha mãe.
Havia o sofá do porão do vizinho que ela visitou várias vezes em sua longínqua juventude e já quase não se lembrava disso! Era a prova inconteste de que ninguém precisa de uma cama para conhecer todos os meandros do prazer.  Nunca um sofá velho e empoeirado imaginaria ser tão explorado!  E tinha o sofá novo do amigo de infância que ela queimou com o ferro de passar roupas nas últimas férias que passou em Cuiabá. Riu-se lembrando do sofá que viu a vizinha despachar porque estava trabalhado pela sogra.... E o sofá de sua sala, cheio de seus gatos! Leco, Neco, Teco e Beco que ali deitavam e ronronavam o dia inteiro impávidos...
Criou um verdadeiro desfile mental de sofás para não se permitir pensar que ele dormia no sofá da sala do computador para, inconscientemente,  retardar a hora de ir para a cama, onde a mulher incansavelmente o esperava...  E ai o sofá era verde, da cor de tudo o que brota e medra e espera o dia nascer. Então lembrava que não! Que devia ser um sofá marrom-desbotado mesmo,  em que ele se deixava cair de cansaço  na esperar da mulher linda e perfumada que nunca terminava seus relatórios diários antes das duas da madrugada! 

sábado, 14 de abril de 2012

Enquanto seu lobo não vem

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Tem tempos que ela some mesmo. Sabe-se lá por onde anda. Da última vez que a vi, andava com ares... sabáticos e uns franzidos de testa muito cheios de metafísica. Ficou chateadíssima, quando lhe disse que passasse a dormir e acordar mais cedo, que esses grilinhos encucadores madrugueiros logo desapareceriam  e que Deus ajuda quem cedo madruga ...  Disse que a deixasse com seus burburinhos de cigarra e fosse viver minha vida  de formiguinha feliz. Soltou mais uns dois despautérios e mandou-me categoricamente à merda!
Enquanto colaboradora deste blog, estive tentando convencê-la a postar utilidades, afinal, é assim que os blogs se difundem, ganham seguidores... são lidos, enfim! Agora há pouco ouvia na TV a entrevista de uma blogueira que divulgou no seu blog um site de onde comprar bolsas falsificadas, não piratas, mas cópias perfeitas! Disse que o site vende até o papel de embrulho pirata, digo, papel-cópia! Um outro, que descobri semana passada, garantia descobrir o dia do casamento do leitor ou leitora.  Eu também podia dar dicas aqui de como eliminar as bolas de pelos engolidas pelos gatos, indicar quais as melhores rações.... Até Burroughs dedicou um livro inteirinho para falar sobre os bichanos! Mas podíamos dar dicas de culinária, ou fazer crítica de arte... nem é difícil! O Google ajuda sensivelmente. Hoje mesmo é o centésimo aniversário do Robert Doisneau... aquele daquela foto preto e branco do casal se beijando... então! Ainda tiraríamos onda de intelectuais. Mas pra que? Ela prefere falar que as mulheres também conseguem fazer xixi em pé ,  prefere fazer voz de atriz- loucutora e contar causos de ninguém ou gravar umas músicas mal gravadas também pra ninguém, postar o link e depois ficar frustrada porque contou quantas vezes foram ouvidas no youtube e só tinham lá as duas vezes que ela mesma entrou pra conferir se ficou legal...
É, portanto, uma parceria complicada. Digamos... inflamável. Mas ela que apareça e se defenda. Por hora são só comentários da nossa relação que não anda muito bem das pernas.  E antes que ela apareça e poste sobre os sonhos expressionistas que  anda tendo ou fale das alpercatas da mulher de dois metros que  encontrou no metrô, registro desde logo meu descontentamento de formiguinha. Acho que a Fada Bêbada precisa de ainda algumas sessões que podem ser de psicanálise ... mas aulas de boxe também poderiam ajudá-la.... Essa coisa de não ter um pinto sempre foi um nó górdio pra ela. A fase oral ela não superou também, nem um complexo de Eléctra mal solucionado seríssimo... Mas ela prefere escrever contos quase eróticos  e atribuir suas perversões sexuais a uma libido de super fêmea!!!
Então, brindemos às nossas inutilidades públicas... pelo menos enquanto seu lobo não vem!

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Lua no cio


Estava a um palmo da lua em sua janela, quando entrou de rompante no quarto meio desamparada e inteiramente aflita. Estavam tão próximas, que, por um átimo pensou que ou se desgarrava naquele exato momento, ou não o faria nunca mais! Então estaria presa para sempre em sua amarelidão de lua baixa.

Que moça boba!!! Fechou a janela achando que estava livre... E do lado de dentro via ainda mais clara a lua que não via fora.

Então fechou os olhos... e mais uma vez, lá estava... cheia e brincante a dona dos seus olhos e janelas cerrados e de seu desejo contido.

Acendeu uma vela, se não para seu anjo da guarda, para fazer fagulha e distrair seus olhos de moça aluada! Quem sabe a chama fogosa fazia a noite passar em claro? Porque tinha medo de dormir e sonhar que toda vez que a lua crescia era para mostrar pra todo o mundo que ela estava nua e no cio, largada no céu.

Senhora

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Talvez eu não seja a hora de ninguém

Dormir e acordar é muito chato

Queria sumir aos vinte e quatro

E aos vinte e cinco

Falar de mim aos desafetos



Aquela hora que passa

E que por sessenta minutos

Você pensa lhe pertencer de alguma forma

Não sou eu



Eu nem sou minhas horas

Quando elas vêm

Já foram



Minhas horas são relógios quebrados

Que quebrei por raiva do barulho



Nem amores

Nem baladas

Nem horas

Uma tuia de dias e meio-dias

Com sol forte na cabeça



Eu queria ser o amigo do anjo

Para andarmos juntos nos inferninhos



Mas sou o mármore secular

E a cara doída da Pietá

Doida a Pietá

Senhora sem tempo

Sem hora


quarta-feira, 4 de abril de 2012

Safo e o mito do fauno


Andava sempre atenta a possível aparição de um tal sátiro que há tempos lhe aparecera em sonho. Um sátiro, de pés de cordeiro, ombros de estivador e olhar psicodélico de quem pode ensandecer a qualquer momento. Apresentavam-lhe moços direitos, trabalhadores, de moral ilibada... e acreditava que descobriria faunos aprisionados sob tão renitentes virtudes. Conhecia-os um pouco mais... e confirmava que eram, sim, moços muito bem centrados em sua sanidade cotidiana e fecunda. Então se desinteressava e ia cuidar de suas alfacinhas. Eram as meninas dos seus olhos!
E se lhe perguntavam por que um sátiro, ela ria. Ria-se de si, mas não desistia de seu encantador. Dizia que ele tinha música, que sabia desfolhar realidades e conseguiria desnudá-la com um único sopro.  E se falavam que estava louca, ai sim se sentia em casa, afinal, era na falta de esteios que poderia esbarrar-se com seu fauno encantador de poetisas.
Ela virava os copos dos homens e não encontrava nada do que procurava dentro deles além do cheiro de álcool ou do gelo derretido. Tragava as guimbas apagadas nos cinzeiros alheios e continuava vestida com as segundas, terças ou quartas-feiras que lhe tatuavam a pele. Também o sábado e o domingo cobriam suas vergonhas da mesma digna e pudica veste. Ela só queria tê-las arrancadas ou rasgadas pelos caninos de um homem mau.
Chafurdava-se nos corpos dos homens e não encontrava nada senão peles e pelos obedientes a uma humanidade óbvia e incapaz de fazer-se barro ou voltar ao pó.
Errou desastrosamente na premissa de que seria mais fácil encontrar o homem errado que buscar o certo! Mas que ninguém a acusasse de idealista contumaz, afinal, não buscava a perfeição... só esperava o desgarrado, o sorrateiro, o descabido. E vejam só!  Ainda ia ter de escrever muita poesia, engolir muita madrugada a seco e amar muitas mulheres... até que Afrodite dotasse um fauno de encanto o bastante para lhe entorpecer algures.


domingo, 1 de abril de 2012

Pela estrada a fora - On the Road


          Sempre nutriu uma identidade desvelada com piratas, ciganos andantes, marinheiros, mambembes e afins...  Um dia comprou uma moto, fez caber um enorme guarda-chuva na mochila... e saiu cantando pela estrada a fora:
     -    “I can't carry you, Baby. Gonna carry somebody else...” On the road again

sábado, 31 de março de 2012

Bom Dia


Acordou dizendo que aquele seria “o dia da canoa virar”, ou da “cobra fumar”, “da onça beber água”... Só sabia que seria um dia curto.
Olhou os cabelos escuros do marido ainda deitado ao seu lado, pensou nos doze longos anos de seu – podia dizer feliz- casamento... e levantou-se da cama para ver se, ao menos pela janela, o dia anunciava uma lufada boa de vento.
Acendeu um cigarro e olhava atenta a sinuosidade da fumaça. Ela era bem assim por dentro. Sinuosa como suas baforadas, curvilínea como uma serpente, torta como um descaminho... Mas não julgaria seus entrementes, como não se deve julgar a natureza. A natureza é. Ela também.
Doze anos juntos, fora o tempo das intermitências... Muito amor para pouca eternidade. O que são doze anos para quem só tinha um cachorro e uma única viagem a Paris? Foram anos difíceis, cresceram juntos e estavam longe de uma possível decadência... Agora já se podia mesmo avistar ao longe uma prosperidade que se anunciava tímida, mas galopante...
Enquanto pegava uma xícara de café, burilava mentalmente o discurso da conversa que teria com o marido logo mais. Carregava uma serenidade amarela no olhar e um monstrinho vermelho no juízo... e que ninguém tentasse compreender esta convivência pacífica e quase mutualista.
Acordá-lo-ia. Assim evitaria a hipocrisia do bom dia... Pronto. Tava decidido! Subiu correndo para o quarto, querendo chegar antes que a coragem a deixasse... e, tão logo abrisse a porta, ele lançou sobre si seus dois grandes faróis matinais e um sorriso de bom dia da vida toda. Ela,  num "oi" curto e de relance , apagou o cigarro da cobra, deixou a onça sem água e remaria mais um pouco sua canoinha de papel, afinal, agora já tinha sido dada a largada do dia...

sábado, 17 de março de 2012

Diário do Fim do Mundo - Parte III : Oração ao Anjo da Noite


Façamos uma oração pelo fim do mundo ao anjo da noite
Boa noite ao desaviso. Já estamos embarcados. Amanhã, pela manhã, trânsito já aquecido, estarei quase na fresta de passagem. Estarei quase voltando do sonho de todas as noites. A cortina meio aberta chama devagar, como a boa senhora que lhe vem acordar todas as manhãs com batidas leves na porta. Esta senhora arrasta chinelos de pano, por isso não a ouve, por isso não se dá conta de sua presença contínua. Insistente.
            Boa noite, anjo mau dos meus desavisos. Língua calada, cuja saliva já me lambe seca.  Há tempos desceu-me as asas. Tempos inteiros de desavisos. E se o telefone toca, seria engano, não fosse riso, graça de trincar os dentes.
            Se eu ficar, fico pra fumar todos os papéis e as fotografias da praia.
O anjo do porta retratos. O anjo da capa do CD e a estante coberta de querubins.  Tudo sobeja. Pena. Azar!
           Volto amanhã, por volta das onze, com o sol quase tinindo e, enquanto não, tudo bem. O anjo de cera derrete em vela e some outra vez. O nome do anjo queima aos pouquinhos e some. Temos sono.    

quarta-feira, 14 de março de 2012

Diário do Fim do Mundo – Parte II




Não sabia o que viria depois de tudo. E uma parte sua, não derrotada, ainda queria tomar os remos de Caronte e singrar, com medo sim, mas com norte ao outro lado do Aqueronte. Queria latir mais alto que as três cabeças de Cérbero, porque é certo que ela correria para onde quer que houvesse chão.
Se alguma razão pudesse confortá-la, era a de que, depois da tempestade, se não viesse a bonança, ao menos um solzinho tímido havia de surgir. Depois de todo apogeu, a queda ; depois de todo paroxismo, a saúde... ou a morte. Então que viessem as Fúrias, os monstros marinhos, os Titãs... Ela já os esperava a todos em sua sala de estar e talvez os convidasse a uma cigarrilha de canela, ou a um cigarro de palha!
Abriu mais uma vez seu Diário de Fim do Mundo e desta vez não escreveu palavra. Rasgou a pagina e a roupa. Deixou-se cair rota no abrigo do próprio grito.
E antes que alguém pudesse dar conta de onde vinha o estertor, levantou-se, sacudiu o pó do corpo e inflou o peito de um ar ainda pesado. Vestiu uma calça que jazia na bagunça quase infinita da cama e, já de pé, defronte ao espelho, afastou os longos cabelos do seio doente. Contemplou o colo nu, num momento suspenso entre a vida e o porvir. Acariciou os dois, sem distinção. Afinal, “nunca as mulheres são tão fortes do que quando se armam de suas fraquezas”.
Vestiu uma blusa e bateu a porta de casa atrás de si, sem munir-se do óbulo sob a língua. Sabia que não teria condutor ao seu Hades, mas nem por isso abandonar-se-ia à eterna pasmaceira da margem de cá

terça-feira, 13 de março de 2012

Diário do Fim do Mundo - Parte I

        Começou uma espécie de Diário do Fim do Mundo, porque de alguma forma, algo em si ruía. E ela que sempre acreditou que mudanças são boas, mesmo que fosse para sacolejar a existência, estava com medo.

        Apegar-se à sua solidão era, por mais anacrônico que pudesse parecer, uma forma de sentir-se menos só. E esta companhia a confortava. Ademais, estava bastante ocupada com seu Diário de fim do mundo...  Nele tomava nota que mudara de cores. Agora usava roupas escuras, preto de preferência, mas cinza e azul marinho iam-lhe então muito bem. Longe de ser um luto, era um compenetrar-se em si, uma misantropia necessária. Ela, sempre muito dada às gentes, via-se em momento de contenção. Estava retendo as cores todas dentro de si, de modo a não deixar nada para as roupas, nada para quem a visse...


        Há anos atrás experimentara uma contenção semelhante... naquela ocasião, sumira com as cores por enjoar delas... as quentes então, chegavam a lhe causar urticária, enxaqueca, náuseas a não mais poder!
Agora se tratava de uma purgação de excessos... Havia tanto mundo dentro de si, que precisava podar as sobras, guardar o que não cabia a mais ninguém. Apossou-se, egoisticamente, de suas cores... Então, menos verde, menos amarelo, até menos vermelho – sua cor mais expansiva! Guardá-las todas era uma forma de protegê-las, n´algum lugar seguro e eterno, aonde o fim do mundo não chegaria!

quarta-feira, 7 de março de 2012

Para sermos firmes "...pero sin perder la ternura jamás"!!!


      Já em casa, arrancou a camisa tricolor do busto suado e arfante! Final de campeonato e as únicas coisas que ela sabia àquela altura, eram as cores, o hino do Flusão e o placar do jogo.

      Era a primeira vez que ia sozinha ao estádio. E ia ver seu time! Levou radinho de pilha, algum dinheiro num porta-documentos e um corretivo facial, que afinal, o negro de suas olheiras não combinava com o vermelho, o verde e o branco que pintavam sua pele morena.

      Não por acaso, quando ainda estava sóbria e o jogo não tardava a começar, veio-lhe à mente uma sensação tão remota quanto viva e quente, do seu aniversário de dezoito anos, quando alugou um quarto de hotel e trancou-se lá por dois dias com o violão, três maços de cigarro e uma garrafa de vodka barata e Tomaz, uma calopsita que assobiava o hino do Flu e do Brasil com os pés nas costas... ou com as asas na cabeça!!!

      Foi tanta coisa passando em frente aos seus olhos estáticos, no meio da arquibancada, que ela não lembrava quem tinha feito o primeiro gol, nem sabia exatamente se o juiz marcava tiro de meta ou pênalti... Na verdade, só conseguia ver o dito impedimento quando o comentarista apontava na tela da TV. Mas o moço que vendia cerveja, passou cantando uma música árabe, se seus ouvidos não a enganavam... e o garotinho à sua frente conhecia nome e sobrenome de todos os jogadores do time! Mas ela vibrava mais forte que todos eles juntos!

      Então, àquela altura, teve pena de jogar a camisa oficial no cesto de roupa suja... Esticou-a sobre a cama e estendeu-se, de corpo exausto e nu, sobre ela. Achou que daria uma foto até bem sensual... Sua cara manchada de rímel e tinta escorrida pelo colo despido... suas coxas grossas e grudadas de suor colando na fibra da camisa... Fez caras e bocas, excitou-se com sua performance de torcedora tricolor vitoriosa e despida, gargalhou alto e dormiu pesadamente depois de se tocar e sentir seu corpo inteiro fremir.

      Acordou com o destempero do despertador, depois de ativada a função soneca pela quinta vez. Jogou-se sob o chuveiro, catou os estardalhaços da noite anterior no seu quarto, mergulhou no primeiro vestido que achou no guarda-roupas e meteu toda a bagunça na área de serviço.  A camisa do Nense foi embandeirar-se flamejante na janela e ela saiu calçando os sapatos no caminho. Quase esquece as chaves do carro e só sossegou quando apertou contra o peito o filho que a esperava de farda e mochilinha na entrada do prédio do ex-marido. Agora podiam comemorar juntos a semana inteirinha! Mas a próxima final do Flu era dela e tava combinado!

domingo, 4 de março de 2012

Me queira bem (com a licença da ênclise!)

Nessa saga de "Amores Malditos", a Fada Bêbada me contou uma história desafortunadamente insandecida... mas agora já é tão cedo para quem não dormiu, nem vai... e a chuva tá caindo com tanta impertinência lá fora... que, por hora, vou só cantar o conto que que fica aqui empenhado para breve breve...

Disse-me que a moça cantava com olhos de faca amolada e uma voz muito mais ébria e muito menos esgarçada que a minha:

Se eu não contar o seu segredo, quento é que eu ganho?
Se eu fingir que tenho jeito, será que te apanho?
Não se desfaça assim do meu decote, baby.
Não me lembre que eu estou descompassada
Ou eu esqueço os meus bons modos e te marco a pele, baby!
Ah, meu bem...
Não desdenhe assim do meu caráter, baby
ou eu largo a mão de ser tão carinhosa...
Então esqueço os meus bons modos e te mostro os dentes, baby!
Meu bem, não me venha com jeitinho de quem foge do dragão
Não esqueça que eu enxergo longe, 
leio a sua mão
Não me deixe só na pista, meu amor, me faça bem!
Meu amor, me queira bem!
Me queira bem, meu bem!     http://www.youtube.com/watch?v=OC2rIaDpiW4&feature=g-upl&context=G2ab9956AUAAAAAAAAAA

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Navegar é preciso...






  

      Trinta e dois graus à sombra, uma galeria encravada no meio da Sans Peña e a demora da espera para encadernar a cópia do livro xerocado... Ela olhava para cima, para o lado e para a hora no celular que gritava seu atraso. Balançava o pé, batia a ponta dos dedos na mesa... até pousar desavisadamente os olhos  na borrachinha de dinheiro contorcida sobre um pacote de papel A4. Tentou esboçar um sorriso de indiferença  mas antes, a borrachinha encarou-a muito malandramente, soltou uma gargalhada petulante e bradou em voz muito impostada:

 - Navegar continua a ser preciso, ver borrachinhas de dinheiro contorcidas não é preciso!!!

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Da aparente dualidade entre ter ou ser a escolha


Entre o risco da certeza e a certeza do perigo sempre optou, muito destemidamente, pela segunda porque dava mais emoção, porque fazia o coração pulsar.  Mas as pessoas deixam de ser jovens um dia! Assim, ela deixou de optar pelo perigo. Passou a sua eleita incondicional.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Lamento de Vento Norte

Em plena segunda-feira de Carnaval  ela me sai com mais um dizer de mesa de bar:

Fada Bêbada- ...Porque amores malditos são como ervas daninhas: têm de ser extirpados e ponto. 

E não contente pega seu violão, este sim maldito, e canta:  http://www.youtube.com/watch?v=5eepOblUNaA&feature=youtu.be


sábado, 18 de fevereiro de 2012

Amores Malditos - Parte II (Edição Especial de Carnaval: Mal de Amor)


      Já saiu chutando latas e as pedras soltas da calçada. Nunca soube dizer quanto tempo ficaria fora, nem precisaria, era Carnaval! Ele só precisava estar na rua. Assim, de repente, algum respingo da alegria alheia poderia, quem sabe, atingi-lo! Mas tristeza não é boa fantasia carnavalesca e certamente que ele não encontraria alento antes de despir-se dela.
      Os foliões respiravam com tanta ânsia que lhe roubavam todo o ar. Também não lhe sobrava espaço onde fincar os pés. Pensou em sair voando, mas as dores do amor pesam nas costas, murcham o peito... e a primeira lição para qualquer bicho que voe é manter o queixo erguido e o peito estufado. Ele não tinha postura, nem ares de voador...
      Como o dinheiro também lhe era escasso, já saia de casa calibrado ao rum com laranja e soda limonada .
      A rua estava apinhada de moças lindas, rapazes fortes, criaturas verdes, crianças coloridas, papagaios de pirata e algo tão grande, mas tão grande... que a qualquer momento, quando menos se esperasse, poderia explodir! Teve medo e a convicção de ser o único desperto ali. Toda aquela alegria dependeria do quão desapercebido ele conseguisse singrar entre a multidão entorpecida.
      Então começou apertar o coraçãozinho acanhado dentro da blusa. Sabia que só o silencio, que tentava inutilmente esconder, causaria estertor maior que a gargalhada eufórica da multidão. Certamente teria enlouquecido naquele instante, corrido ou saltado da ponte, mas, quando a moça inadvertida se lhe esbarrou, vertendo-lhe toda a cerveja que trazia à mão, apenas ensaiou um sorriso amarelo que não precisou gastar, já que ela, rápida e desajeitada, no mesmo afã com que chegou, saiu, não sem antes sorver-lhe a boca num beijo de dez minutos.
      Depois dali, certamente que algo enorme teria explodido sim, lançando estardalhaços por todo lado e fazendo com que sua cabeça latejasse, suas pernas bambeassem  e seu estômago revirasse. Não, não, a postura ruim continuava a ser o velho mal de amor e o peso dos muitos carnavais!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Amores malditos - Parte I


      De frente ao Tenente Gomes insistia. Queria porque queria falar com o PM Guedes. Ele estava errado. Era um absurdo preteri-la em função das outras meninas. A rua era dela também e ele não podia fazer vistas grossas de novo. Tinha que tomar uma providência. Ele estava do lado delas, por acaso? Viu quando mexeu com uma das meninas, cheio de intensões!!! Falava com sua voz grossa que o tal PM a olhava sempre de cima a baixo, fazia cara de poucos amigos... mas tinha certeza que ele a queria tanto quanto ela o desejava. Então resolveu testa-la, enciumá-la, atormentar-lhe o sono. E conseguira! Nunca mais dormira em paz, desde aquele dia, pensando naquele homem grande, com uma cara enorme e dentes de quem morde pedra.
      Àquela altura o Tenente já suspeitava da pouca sanidade de Suellen Crhistine, que voltava pela quinta vez ao 5º BPM procurando sarna pra se coçar. Mas paciência tem limite e o PM Guedes já havia perdido a dele. Chegou na sala bufando, olhou –a  com a cara maior que de costume – O que é que você quer comigo? Eu sou casado com uma mulher loira e de olhos azuis!  Me esquece ou vou jogar um processo de calúnia nas suas costas! Eu sou casado com uma mulher, porra!
      Suellen, com cara de cachorro mal morto, encheu o peito, inflando o pouco seio que tinha, endireitou a saia, mexeu nervosamente no rabo de cavalo e saiu da sala em menos de meio minuto. Foi o tempo da única lágrima que tinha guardada cair. 

Trilha sonora de Amores Malditos Parte I: http://www.youtube.com/watch?v=IUlCH8PbyiA&ob=av2e

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Ladeira a baixo


Descemos ladeira a baixo. Abaixo o mundo! Porque acima de nós só o céu...e chegar a ele seria só uma questão de tempo. Eu lembrava da ladeira que tantas e tantas vezes desci no meu carrinho de rolimã. Claro que eu tinha um!  Eu, meus sete anos, as britas escuras da ladeira e a velocidade! Era a lembrança mais gostosa da minha infância... E, coincidência ou não,  a mesma que desceríamos  juntos, molhados e bêbados muitos anos mais tarde. 

Calça de brim cor de telha colada à perna meio bamba de tanto correr... E os cabelos no rosto me embaçavam a visão mole com a figura daquela criatura de pele morena ao meu lado, que ria alto e parecia querer explodir só para espalhar os caquinhos por aí. Como trilha sonora pessoal eu cantarolava mentalmente alguma coisa do Creedence, alternando com Vapor Barato na versão de Gal – só pra tropicalizar as estruturas.

E seria tão óbvio sair correndo pela rua quando a chuva caiu forte, aquela tarde, que fiz questão de me conter na previsibilidade quase inócua da minha pieguice, não fosse ter de seguir aqueles olhos negros fugidios que se precipitaram desgarrados temporal a fora.

Nada foi realmente planejado, mas estávamos há dois dias e meio fora de nossas vidas cotidianas. Abaixo o mundo! O último que sair apague a luz, pague a conta, o táxi... Eu recomendo. Com certeza me procuraram nos bares, nas delegacias, nos hospitais e já deviam estar batendo às portas do IML, quando rasguei a sola do pé numa lata chutada só pra brindar o clichê e improvisar o retorno de Jedi...

Moral on the road da história: Dorotys desavisadas, latas mal chutadas podem desviá-las da trilha de paralelepípedos amarelos. Portanto, sapatinhos vermelhos nos pés, que depois dos trinta... chuva e pé descalço é gripe na certa!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Morte de vida anunciada


Não se sabe que superestrutura a mantinha de pé, mas ela estava lá plácida, serena. O próximo passo seria fechar os olhos para nunca mais abri-los. E ninguém saberia porquê.  Talvez o rapaz por quem fora apaixonada achasse que ela teria morrido de amores, talvez seu analista revisse, em vão, a alta que lhe dera nos últimos meses, talvez ela quisesse ter morrido aos vinte e sete, mas, tendo perdido o bonde do pop estrelato precoce, agarrara-se à  última oportunidade de morrer aos trinta e três...
Ela não deixaria carta ou qualquer indício de anormalidade. Tudo poderia permanecer imexível nas suas estantes cobertas de livros e poeiras. Tudo seria, para sempre, eterno naquela manhã quente que adentrava a janela, inclusive seu corpo inerte.
Mas ela tornou, sim, a acordar e só ao cair da tarde sentou-se à cadeira, ao pé da porta, e chorou todo o pranto que a teria matado pela manhã. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Dia enformando a noite informando o dia

Ela gostaria de estar dormindo às quatro da manhã, mas sua musiquinha interna era tão saltitante... E ela não tinha bebido nada além de água e coca-cola sem gás.
Porque a noite era quente abriu a janela, mas o vento, que tirava tudo do lugar, só lhe soprava da pele pra dentro...
E como já não havia o que fizesse para ninar seu corpo insone, fez tocar a Habanera de Carmen e, sentindo-se a própria cigana, castanholou seus dedos nus pelo ar, virou e revirou os olhos, ensaiou uma dança desajeitada e só se deixou quedar  junto ao silêncio.
Então inspirou com gosto e retumbou no quarto agora mudo " Formidável! Toda forma se deforma em si!" e dormiu.

...revirando a noite
revelando o dia
noite e dia
noite e dia...         (Fantasia, Chico)

domingo, 1 de janeiro de 2012

Feliz Ano de Novo!!!


Faltavam pouco mais de dez minutos para meia noite e a enorme aglomeração humana pintava de branco a areia já clara e iluminada do posto cinco de Copacabana. Tanta gente cabia através da janela daquele 12º andar... E ela entre taças de espumante e o riso festivo dos convivas. A chuva fina deixava o cenário mais colorido com a ajuda dos guarda-chuvas. E era um chuvisco tão insistentemente brando, que fê-la querer preciptar-se também. Lembrou-se de deixar os sapatos, não fechou a porta atrás de si e desceu pela escada mesmo, que o elevador antigo e pouco confiável tardaria a chegar. Cada andar transcorrido era mais um giro na mente que já trabalhava em espiral... Atravessou a rua mais ébria pelas escadas que pelo champanhe e, antes de lançar-se ao mar, jogou-se contra a massa compacta dos milhares de espectadores dos fogos de artifícios que começariam a estourar e que não percebiam sua travessia quase tresloucada. Como não trazia flores nem perfumes, daria seu corpo inteiro à Senhora do Mar.
E quando estava tão longe da beira da praia, quanto os pensamentos estavam do seu corpo, deixou-se boiar como imaginava terem feito os primeiros aminoácidos do planeta. Sentia a carícia do mar dos poros pra dentro e as explosões luminosas no céu eram tão assíduas quanto a chuva fina que lhe beijava a fronte salgada.
Voltou à praia e atravessou de novo a multidão atônita. Devia estar invisível na sua eternidade solitária. Sabia que se o mundo acabasse àquela altura, talvez só ela percebesse. A rua policiada e muito clara tinha então outro idioma, tal a frequência de turistas estrangeiros. Gostou de ouvir outra língua, que não tentou identificar, roçando seus ouvidos.
Agora já podia esperar o elevador. Tinha todo o tempo do mundo para voltar ao parapeito da velha janela.