quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Ladeira a baixo


Descemos ladeira a baixo. Abaixo o mundo! Porque acima de nós só o céu...e chegar a ele seria só uma questão de tempo. Eu lembrava da ladeira que tantas e tantas vezes desci no meu carrinho de rolimã. Claro que eu tinha um!  Eu, meus sete anos, as britas escuras da ladeira e a velocidade! Era a lembrança mais gostosa da minha infância... E, coincidência ou não,  a mesma que desceríamos  juntos, molhados e bêbados muitos anos mais tarde. 

Calça de brim cor de telha colada à perna meio bamba de tanto correr... E os cabelos no rosto me embaçavam a visão mole com a figura daquela criatura de pele morena ao meu lado, que ria alto e parecia querer explodir só para espalhar os caquinhos por aí. Como trilha sonora pessoal eu cantarolava mentalmente alguma coisa do Creedence, alternando com Vapor Barato na versão de Gal – só pra tropicalizar as estruturas.

E seria tão óbvio sair correndo pela rua quando a chuva caiu forte, aquela tarde, que fiz questão de me conter na previsibilidade quase inócua da minha pieguice, não fosse ter de seguir aqueles olhos negros fugidios que se precipitaram desgarrados temporal a fora.

Nada foi realmente planejado, mas estávamos há dois dias e meio fora de nossas vidas cotidianas. Abaixo o mundo! O último que sair apague a luz, pague a conta, o táxi... Eu recomendo. Com certeza me procuraram nos bares, nas delegacias, nos hospitais e já deviam estar batendo às portas do IML, quando rasguei a sola do pé numa lata chutada só pra brindar o clichê e improvisar o retorno de Jedi...

Moral on the road da história: Dorotys desavisadas, latas mal chutadas podem desviá-las da trilha de paralelepípedos amarelos. Portanto, sapatinhos vermelhos nos pés, que depois dos trinta... chuva e pé descalço é gripe na certa!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Morte de vida anunciada


Não se sabe que superestrutura a mantinha de pé, mas ela estava lá plácida, serena. O próximo passo seria fechar os olhos para nunca mais abri-los. E ninguém saberia porquê.  Talvez o rapaz por quem fora apaixonada achasse que ela teria morrido de amores, talvez seu analista revisse, em vão, a alta que lhe dera nos últimos meses, talvez ela quisesse ter morrido aos vinte e sete, mas, tendo perdido o bonde do pop estrelato precoce, agarrara-se à  última oportunidade de morrer aos trinta e três...
Ela não deixaria carta ou qualquer indício de anormalidade. Tudo poderia permanecer imexível nas suas estantes cobertas de livros e poeiras. Tudo seria, para sempre, eterno naquela manhã quente que adentrava a janela, inclusive seu corpo inerte.
Mas ela tornou, sim, a acordar e só ao cair da tarde sentou-se à cadeira, ao pé da porta, e chorou todo o pranto que a teria matado pela manhã. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Dia enformando a noite informando o dia

Ela gostaria de estar dormindo às quatro da manhã, mas sua musiquinha interna era tão saltitante... E ela não tinha bebido nada além de água e coca-cola sem gás.
Porque a noite era quente abriu a janela, mas o vento, que tirava tudo do lugar, só lhe soprava da pele pra dentro...
E como já não havia o que fizesse para ninar seu corpo insone, fez tocar a Habanera de Carmen e, sentindo-se a própria cigana, castanholou seus dedos nus pelo ar, virou e revirou os olhos, ensaiou uma dança desajeitada e só se deixou quedar  junto ao silêncio.
Então inspirou com gosto e retumbou no quarto agora mudo " Formidável! Toda forma se deforma em si!" e dormiu.

...revirando a noite
revelando o dia
noite e dia
noite e dia...         (Fantasia, Chico)

domingo, 1 de janeiro de 2012

Feliz Ano de Novo!!!


Faltavam pouco mais de dez minutos para meia noite e a enorme aglomeração humana pintava de branco a areia já clara e iluminada do posto cinco de Copacabana. Tanta gente cabia através da janela daquele 12º andar... E ela entre taças de espumante e o riso festivo dos convivas. A chuva fina deixava o cenário mais colorido com a ajuda dos guarda-chuvas. E era um chuvisco tão insistentemente brando, que fê-la querer preciptar-se também. Lembrou-se de deixar os sapatos, não fechou a porta atrás de si e desceu pela escada mesmo, que o elevador antigo e pouco confiável tardaria a chegar. Cada andar transcorrido era mais um giro na mente que já trabalhava em espiral... Atravessou a rua mais ébria pelas escadas que pelo champanhe e, antes de lançar-se ao mar, jogou-se contra a massa compacta dos milhares de espectadores dos fogos de artifícios que começariam a estourar e que não percebiam sua travessia quase tresloucada. Como não trazia flores nem perfumes, daria seu corpo inteiro à Senhora do Mar.
E quando estava tão longe da beira da praia, quanto os pensamentos estavam do seu corpo, deixou-se boiar como imaginava terem feito os primeiros aminoácidos do planeta. Sentia a carícia do mar dos poros pra dentro e as explosões luminosas no céu eram tão assíduas quanto a chuva fina que lhe beijava a fronte salgada.
Voltou à praia e atravessou de novo a multidão atônita. Devia estar invisível na sua eternidade solitária. Sabia que se o mundo acabasse àquela altura, talvez só ela percebesse. A rua policiada e muito clara tinha então outro idioma, tal a frequência de turistas estrangeiros. Gostou de ouvir outra língua, que não tentou identificar, roçando seus ouvidos.
Agora já podia esperar o elevador. Tinha todo o tempo do mundo para voltar ao parapeito da velha janela.