quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O nome de Alice

Queria ser menina, no auge dos seus oito anos, e passar a tarde inteira no quarto brincando de mulher. Queria estar só. Rafaela tinha todas as idades em suas breves caminhadas.


Era uma quinta–feira quando encontrou uma senhora caminhando por volta das seis da manhã, com longos cabelos brancos que lhe chegavam abaixo dos ombros. Ela queria ser aquela mulher esguia, percorrendo o calçadão e ter o olhar de ferro como tinha aquela jovem senhora.

Queria chamar-se Alice, é tão mais sutil, mais feminino... Alice lembra uma menininha loira, que cai num buraco, que descobre sonhos engarrafados. Ela queria ser Alice ou Berenice que é um nome nobre, mas Rafaela era muito pouco para quem queria pouco mais que dias inteiros, perdida numa mata virgem.

E sonhava ter um namorado que dançasse com uma flor vermelha entre os lábios para entregar-lhe ofegante. Dançariam a noite inteira e não diriam uma palavra. Rafaela não queria palavras, queria olhos profundos e soslaios sutis, tudo que se pudesse fazer na ponta do lápis ou dos pés, como o desenho de uma bailarina que amarra as sapatilhas.

Imaginava nunca deixar o seio materno ou, ao menos, saber o que seria isso. Como se pode esquecer algo que dizem tão fundamental? Como não lembrar do seio farto de Da. Matilde? Por que ninguém lembrava do colo da mãe? Então ela queria uma filha e ser sua própria filha...pular dos dois ao dez anos, amar cada aniversário, queria ser um sonho de Alice e ouvir dizerem-na “Amo você , Alice”, queria sentir-se grande e gorda no peso de Berenice. Achava que mulheres grandes e gordas eram atraentes, tanto quanto as magras, ossudas, às vezes sem graça.

Mas o espelho se lhe mostrava tão pequena e frágil. Bracinhos curtos que mal abraçariam um homem largo ou uma mãe carnuda. Não tinha espelhos em casa.

Gostava de um perfume que sua vizinha usava e não sabia o nome, também nunca perguntaria. Todo perfume que começava a usar enjoava e jamais conseguia usar o frasco inteiro. Enjoava. E era bem isso...Rafaela era um nome enjoado.

Descobriu que podia trocar de nome, alguém falara uma vez e ela gostou tanto da idéia que só não buscou de pronto um cartório porque a dúvida não se dirimia...Alice, Berenice...mas Isaura era um nome bonito e Firmina era o nome de sua avó. Era bonito ter nome de avó, então poderia ser Alice Firmina ou só Alice. Nem percebeu que o tempo passava e quando voltou ao mundo dos papéis já havia passado tempo demais e agora seria Rafaela para sempre.

Foi aí que perguntou se seria mesmo Rafaela. Havia de ter um nome místico, um nome espiritual... As cartas, ou as runas deviam poder renomeá-la...certamente que podiam! Sua filha chamar-se-ia Carmem, como a da ópera e teria cabelos longos como ela não tinha.

Temeu não suportar o incômodo do seu corpo velho demais e jovem, eternamente jovem. Ela queria ser uma mulher. Ela queria amar um homem que a amasse ou mesmo um príncipe que se transformasse em sapo.

Então um psicanalista, que ela jamais cogitou procurar, revelou-lhe que seu prazer estava em vitimizar-se, contaminar-se com seus agouros. Assim Rafaela encontrou o caminho dos céus e gozou, gozou e gozou até cair fatigada, sem mais nome ou sobrenome.



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