sábado, 2 de março de 2013

O ciúme


Porque, afinal, acreditava que a evolução fosse o caminho perseguido e inevitável, tratou de minar o ciúme doentio de tudo a que se afeiçoava - e até do que não, mas, que por alguma razão insólita, dava-lhe algum prazer.

Evoluiu tanto que não tinha mais ciúmes dos amigos, nem do noivo, nem do chefe da repartição. Sim, porque ela costumava ter crises de ciúmes avassaladoras do chefe quando algum colega se destacava mais  que sua habitual eficiência.  Mas já ia longe o tempo em que primos e sobrinhos, namorados e até vizinhos mais próximos lhe tiravam o sono e o pouco juízo.

E quando já não sentia há muito o gosto amargo do bichinho impertinente do ciúme, dedicou-se mesmo ao amor livre... afinal, o lance não era dividir amor, mas multiplicar afetos e experimentos, e gostos, e gozos...

Até que, convicta de seu alto grau evolutivo, começou a se perguntar se seria capaz de sentir ciúmes do que quer que fosse... Era tão mesquinho... Foram tantos anos de desapego e sublimação da posse em nome de um hedonismo heroico e convincente, que todo o resto lhe era agora estranho.

E amor livre vai, amor livre vem... eis que se depara com alguém um pouco mais desapegado que seu desapego e ainda mais fluido que sua fluidez... e foi por água abaixo toda a malemolência, toda o comedimento de sua sensatez... E sob a benção de Hera, Otello, D. José, Dom Casmurro e todo a legião de possessos afins, lançou sua flecha preta e, garganta furada, morreu. Morreu como ato único e último de toda perfeita evolução.

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