sábado, 31 de março de 2012

Bom Dia


Acordou dizendo que aquele seria “o dia da canoa virar”, ou da “cobra fumar”, “da onça beber água”... Só sabia que seria um dia curto.
Olhou os cabelos escuros do marido ainda deitado ao seu lado, pensou nos doze longos anos de seu – podia dizer feliz- casamento... e levantou-se da cama para ver se, ao menos pela janela, o dia anunciava uma lufada boa de vento.
Acendeu um cigarro e olhava atenta a sinuosidade da fumaça. Ela era bem assim por dentro. Sinuosa como suas baforadas, curvilínea como uma serpente, torta como um descaminho... Mas não julgaria seus entrementes, como não se deve julgar a natureza. A natureza é. Ela também.
Doze anos juntos, fora o tempo das intermitências... Muito amor para pouca eternidade. O que são doze anos para quem só tinha um cachorro e uma única viagem a Paris? Foram anos difíceis, cresceram juntos e estavam longe de uma possível decadência... Agora já se podia mesmo avistar ao longe uma prosperidade que se anunciava tímida, mas galopante...
Enquanto pegava uma xícara de café, burilava mentalmente o discurso da conversa que teria com o marido logo mais. Carregava uma serenidade amarela no olhar e um monstrinho vermelho no juízo... e que ninguém tentasse compreender esta convivência pacífica e quase mutualista.
Acordá-lo-ia. Assim evitaria a hipocrisia do bom dia... Pronto. Tava decidido! Subiu correndo para o quarto, querendo chegar antes que a coragem a deixasse... e, tão logo abrisse a porta, ele lançou sobre si seus dois grandes faróis matinais e um sorriso de bom dia da vida toda. Ela,  num "oi" curto e de relance , apagou o cigarro da cobra, deixou a onça sem água e remaria mais um pouco sua canoinha de papel, afinal, agora já tinha sido dada a largada do dia...

sábado, 17 de março de 2012

Diário do Fim do Mundo - Parte III : Oração ao Anjo da Noite


Façamos uma oração pelo fim do mundo ao anjo da noite
Boa noite ao desaviso. Já estamos embarcados. Amanhã, pela manhã, trânsito já aquecido, estarei quase na fresta de passagem. Estarei quase voltando do sonho de todas as noites. A cortina meio aberta chama devagar, como a boa senhora que lhe vem acordar todas as manhãs com batidas leves na porta. Esta senhora arrasta chinelos de pano, por isso não a ouve, por isso não se dá conta de sua presença contínua. Insistente.
            Boa noite, anjo mau dos meus desavisos. Língua calada, cuja saliva já me lambe seca.  Há tempos desceu-me as asas. Tempos inteiros de desavisos. E se o telefone toca, seria engano, não fosse riso, graça de trincar os dentes.
            Se eu ficar, fico pra fumar todos os papéis e as fotografias da praia.
O anjo do porta retratos. O anjo da capa do CD e a estante coberta de querubins.  Tudo sobeja. Pena. Azar!
           Volto amanhã, por volta das onze, com o sol quase tinindo e, enquanto não, tudo bem. O anjo de cera derrete em vela e some outra vez. O nome do anjo queima aos pouquinhos e some. Temos sono.    

quarta-feira, 14 de março de 2012

Diário do Fim do Mundo – Parte II




Não sabia o que viria depois de tudo. E uma parte sua, não derrotada, ainda queria tomar os remos de Caronte e singrar, com medo sim, mas com norte ao outro lado do Aqueronte. Queria latir mais alto que as três cabeças de Cérbero, porque é certo que ela correria para onde quer que houvesse chão.
Se alguma razão pudesse confortá-la, era a de que, depois da tempestade, se não viesse a bonança, ao menos um solzinho tímido havia de surgir. Depois de todo apogeu, a queda ; depois de todo paroxismo, a saúde... ou a morte. Então que viessem as Fúrias, os monstros marinhos, os Titãs... Ela já os esperava a todos em sua sala de estar e talvez os convidasse a uma cigarrilha de canela, ou a um cigarro de palha!
Abriu mais uma vez seu Diário de Fim do Mundo e desta vez não escreveu palavra. Rasgou a pagina e a roupa. Deixou-se cair rota no abrigo do próprio grito.
E antes que alguém pudesse dar conta de onde vinha o estertor, levantou-se, sacudiu o pó do corpo e inflou o peito de um ar ainda pesado. Vestiu uma calça que jazia na bagunça quase infinita da cama e, já de pé, defronte ao espelho, afastou os longos cabelos do seio doente. Contemplou o colo nu, num momento suspenso entre a vida e o porvir. Acariciou os dois, sem distinção. Afinal, “nunca as mulheres são tão fortes do que quando se armam de suas fraquezas”.
Vestiu uma blusa e bateu a porta de casa atrás de si, sem munir-se do óbulo sob a língua. Sabia que não teria condutor ao seu Hades, mas nem por isso abandonar-se-ia à eterna pasmaceira da margem de cá

terça-feira, 13 de março de 2012

Diário do Fim do Mundo - Parte I

        Começou uma espécie de Diário do Fim do Mundo, porque de alguma forma, algo em si ruía. E ela que sempre acreditou que mudanças são boas, mesmo que fosse para sacolejar a existência, estava com medo.

        Apegar-se à sua solidão era, por mais anacrônico que pudesse parecer, uma forma de sentir-se menos só. E esta companhia a confortava. Ademais, estava bastante ocupada com seu Diário de fim do mundo...  Nele tomava nota que mudara de cores. Agora usava roupas escuras, preto de preferência, mas cinza e azul marinho iam-lhe então muito bem. Longe de ser um luto, era um compenetrar-se em si, uma misantropia necessária. Ela, sempre muito dada às gentes, via-se em momento de contenção. Estava retendo as cores todas dentro de si, de modo a não deixar nada para as roupas, nada para quem a visse...


        Há anos atrás experimentara uma contenção semelhante... naquela ocasião, sumira com as cores por enjoar delas... as quentes então, chegavam a lhe causar urticária, enxaqueca, náuseas a não mais poder!
Agora se tratava de uma purgação de excessos... Havia tanto mundo dentro de si, que precisava podar as sobras, guardar o que não cabia a mais ninguém. Apossou-se, egoisticamente, de suas cores... Então, menos verde, menos amarelo, até menos vermelho – sua cor mais expansiva! Guardá-las todas era uma forma de protegê-las, n´algum lugar seguro e eterno, aonde o fim do mundo não chegaria!

quarta-feira, 7 de março de 2012

Para sermos firmes "...pero sin perder la ternura jamás"!!!


      Já em casa, arrancou a camisa tricolor do busto suado e arfante! Final de campeonato e as únicas coisas que ela sabia àquela altura, eram as cores, o hino do Flusão e o placar do jogo.

      Era a primeira vez que ia sozinha ao estádio. E ia ver seu time! Levou radinho de pilha, algum dinheiro num porta-documentos e um corretivo facial, que afinal, o negro de suas olheiras não combinava com o vermelho, o verde e o branco que pintavam sua pele morena.

      Não por acaso, quando ainda estava sóbria e o jogo não tardava a começar, veio-lhe à mente uma sensação tão remota quanto viva e quente, do seu aniversário de dezoito anos, quando alugou um quarto de hotel e trancou-se lá por dois dias com o violão, três maços de cigarro e uma garrafa de vodka barata e Tomaz, uma calopsita que assobiava o hino do Flu e do Brasil com os pés nas costas... ou com as asas na cabeça!!!

      Foi tanta coisa passando em frente aos seus olhos estáticos, no meio da arquibancada, que ela não lembrava quem tinha feito o primeiro gol, nem sabia exatamente se o juiz marcava tiro de meta ou pênalti... Na verdade, só conseguia ver o dito impedimento quando o comentarista apontava na tela da TV. Mas o moço que vendia cerveja, passou cantando uma música árabe, se seus ouvidos não a enganavam... e o garotinho à sua frente conhecia nome e sobrenome de todos os jogadores do time! Mas ela vibrava mais forte que todos eles juntos!

      Então, àquela altura, teve pena de jogar a camisa oficial no cesto de roupa suja... Esticou-a sobre a cama e estendeu-se, de corpo exausto e nu, sobre ela. Achou que daria uma foto até bem sensual... Sua cara manchada de rímel e tinta escorrida pelo colo despido... suas coxas grossas e grudadas de suor colando na fibra da camisa... Fez caras e bocas, excitou-se com sua performance de torcedora tricolor vitoriosa e despida, gargalhou alto e dormiu pesadamente depois de se tocar e sentir seu corpo inteiro fremir.

      Acordou com o destempero do despertador, depois de ativada a função soneca pela quinta vez. Jogou-se sob o chuveiro, catou os estardalhaços da noite anterior no seu quarto, mergulhou no primeiro vestido que achou no guarda-roupas e meteu toda a bagunça na área de serviço.  A camisa do Nense foi embandeirar-se flamejante na janela e ela saiu calçando os sapatos no caminho. Quase esquece as chaves do carro e só sossegou quando apertou contra o peito o filho que a esperava de farda e mochilinha na entrada do prédio do ex-marido. Agora podiam comemorar juntos a semana inteirinha! Mas a próxima final do Flu era dela e tava combinado!

domingo, 4 de março de 2012

Me queira bem (com a licença da ênclise!)

Nessa saga de "Amores Malditos", a Fada Bêbada me contou uma história desafortunadamente insandecida... mas agora já é tão cedo para quem não dormiu, nem vai... e a chuva tá caindo com tanta impertinência lá fora... que, por hora, vou só cantar o conto que que fica aqui empenhado para breve breve...

Disse-me que a moça cantava com olhos de faca amolada e uma voz muito mais ébria e muito menos esgarçada que a minha:

Se eu não contar o seu segredo, quento é que eu ganho?
Se eu fingir que tenho jeito, será que te apanho?
Não se desfaça assim do meu decote, baby.
Não me lembre que eu estou descompassada
Ou eu esqueço os meus bons modos e te marco a pele, baby!
Ah, meu bem...
Não desdenhe assim do meu caráter, baby
ou eu largo a mão de ser tão carinhosa...
Então esqueço os meus bons modos e te mostro os dentes, baby!
Meu bem, não me venha com jeitinho de quem foge do dragão
Não esqueça que eu enxergo longe, 
leio a sua mão
Não me deixe só na pista, meu amor, me faça bem!
Meu amor, me queira bem!
Me queira bem, meu bem!     http://www.youtube.com/watch?v=OC2rIaDpiW4&feature=g-upl&context=G2ab9956AUAAAAAAAAAA